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1000
MACHADO DE ASSIS
DA ACADEMIA BRAZILEIRA
MEMORIAL DE AYRES
H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
7, RUA DO OUVIDOR, 7
RIO DE JANEIRO
6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
PARIS
Em Lixboa, sobre lo mar,
Barcas novas mandey lavrar...
_Cantiga_ de Joham Zorro.
Para veer meu amigo
Que talhou preyto comigo,
Alá vou, madre.
Para veer meu amado
Que mig'a preyto talhado,
Alá vou, madre.
_Cantiga d'el-rei_ Dom Denis.
1888
9 de Janeiro.
Ora bem, faz hoje um anno que voltei definitivamente da Europa. O que
me lembrou esta data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor
de vassouras e espanadores: «Vae vassouras! vae espanadores!» Costumo
ouvil-o outras manhãs, mas desta vez trouxe-me á memória o dia do
desembarque, quando cheguei apozentado á minha terra, ao meu Cattete, á
minha lingua. Era o mesmo que ouvi ha um anno, em 1887, e talvez fosse
a mesma boca.
Durante os meus trinta e tantos annos de diplomacia algumas vezes vim
ao Brazil, com licença. O mais do tempo vivi fóra, em varias partes,
e não foi pouco. Cuidei que não acabaria de me habituar novamente a
esta outra vida de cá. Pois acabei. Certamente ainda me lembram cousas
e pessoas de longe, diversões, paizagens, costumes, mas não morro de
saudades por nada. Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei.
* * * * *
Cinco horas da tarde.
Recebi agora um bilhete de mana Rita, que aqui vae colado:
9 de Janeiro.
«Mano,
«Só agora me lembrou que faz hoje um anno que você voltou
da Europa apozentado. Já é tarde para ir ao cemiterio de S.
João Baptista, em visita ao jazigo da familia, dar graças
pelo seu regresso; irei amanhã de manhã, e peço a você que
me espere para ir commigo. Saudades da
«Velha mana,
«Rita.»
Não vejo necessidade disso, mas respondi que sim.
* * * * *
10 de Janeiro.
Fomos ao cemiterio. Rita, apezar da alegria do motivo, não pôde reter
algumas velhas lagrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo,
com meu pae e minha mãe. Ella ainda agora o ama, como no dia em que o
perdeu, lá se vão tantos annos. No caixão do defunto mandou guardar um
molho dos seus cabelos, então pretos, emquanto os mais delles ficaram a
embranquecer cá fóra.
Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples,--a
inscrição e uma cruz,-mas o que está é bem feito. Achei-o novo de mais,
isso sim. Rita fal-o lavar todos os mezes, e isto impede que envelheça.
Ora, eu creio que um velho tumulo dá melhor impressão do oficio, se tem
as negruras do tempo, que tudo consome. O contrario parece sempre da
vespera.
Rita orou deante delle alguns minutos, emquanto eu circulava os olhos
pelas sepulturas proximas. Em quasi todas havia a mesma antiga suplica
da nossa: «Orai por elle! Orai por ella!» Rita me disse depois, em
caminho, que é seu costume atender ao pedido das outras, rezando uma
prece por todos os que alli estão. Talvez seja a unica. A mana é boa
creatura, não menos que alegre.
A impressão que me dava o total do cemiterio é a que me deram sempre
outros; tudo alli estava parado. Os gestos das figuras, anjos e outras,
eram diversos, mas immoveis. Só alguns passaros davam sinal de vida,
buscando-se entre si e pousando nas ramagens, pipilando ou gorgeando.
Os arbustos viviam calados, na verdura e nas flores.
Já perto do portão, á saída, falei a mana Rita de uma senhora que eu
vira ao pé de outra sepultura, ao lado esquerdo do cruzeiro, em quanto
ella rezava. Era moça, vestia de preto, e parecia rezar tambem, com as
mãos cruzadas e pendentes. A cara não me era extranha, sem atinar quem
fosse. E bonita, e gentilissima, como ouvi dizer de outras em Roma.
--Onde está?
Disse-lhe onde estava. Quiz ver quem era. Rita, alem de boa pessoa, é
curiosa, sem todavia chegar ao superlativo romano. Respondi-lhe que
esperassemos alli mesmo, ao portão.
--Não! pode não vir tão cedo, vamos espial-a de longe. É assim bonita?
--Pareceu-me.
Entrámos e enfiámos por um caminho entre campas, naturalmente. A
alguma distancia, Rita deteve-se.
--Você conhece, sim. Já a viu lá em casa, ha dias.
--Quem é?
--É a viuva Noronha. Vamos embora, antes que nos veja.
Já agora me lembrava, ainda que vagamente, de uma senhora que lá
apareceu em Andarahy, a quem Rita me aprezentou e com quem falei alguns
minutos.
--Viuva de um medico, não é?
-Isso; filha de um fazendeiro da Parahyba do Sul, o barão de Santa-Pia.
Nesse momento, a viuva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora.
Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. Talvez
quizesse beijar a sepultura, o proprio nome do marido, mas havia gente
perto, sem contar dous coveiros que levavam um regador e uma enxada, e
iam falando de um enterro daquella manhã. Falavam alto, e um escarnecia
do outro, em voz grossa: «Eras capaz de levar um daquelles ao morro? Só
se fossem quatro como tu.» Tratavam de caixão pezado, naturalmente, mas
eu voltei depressa a atenção para a viuva, que se afastava e caminhava
lentamente, sem mais olhar para traz. Encoberto por um mausoleu, não
a pude ver mais nem melhor que a principio. Ella foi descendo até o
portão, onde passava um bonde em que entrou e partiu. Nós descemos
depois e viemos no outro.
Rita contou-me então alguma cousa da vida da moça e da felicidade
grande que tivera com o marido, alli sepultado ha mais de dous annos.
Pouco tempo viveram juntos. Eu, não sei por que inspiração maligna,
arrisquei esta reflexão:
--Não quer dizer que não venha a cazar outra vez.
--Aquella não caza.
--Quem lhe diz que não?
--Não caza; basta saber as circumstancias do cazamento, a vida que
tiveram e a dor que ella sentiu quando enviuvou.
--Não quer dizer nada, pode cazar; para cazar basta estar viuva.
--Mas eu não cazei.
--Você é outra cousa, você é unica.
Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura, e abanando a cabeça,
como se me chamasse «peralta». Logo ficou seria, porque a lembrança do
marido fazia-a realmente triste. Meti o caso á bulha; ella, depois de
aceitar uma ordem de ideias mais alegre, convidou-me a ver se a viuva
Noronha cazava commigo; apostava que não.
--Com os meus sessenta e dous annos?
--Oh! não os parece: tem a verdura dos trinta.
Pouco depois chegámos a casa e Rita almoçou commigo. Antes do almoço,
tornámos a falar da viuva e do cazamento, e ella repetiu a aposta. Eu,
lembrando-me de Goethe, disse-lhe:
--Mana, você está a querer fazer commigo a aposta de Deus e de
Mephistopheles; não conhece?
--Não conheço.
Fui á minha pequena estante e tirei o volume do _Fausto_, abri a pagina
do prologo no ceu, e li-lh'a, resumindo como pude. Rita escutou atenta
o desafio de Deus e do Diabo, a proposito do velho Fausto, o servo do
Senhor, e da perda infalivel que faria delle o astuto. Rita não tem
cultura, mas tem finura, e naquella ocasião tinha principalmente fome.
Replicou rindo:
--Vamos almoçar. Não quero saber desses prologos nem de outros; repito
o que disse, e veja você se refaz o que lá vae desfeito. Vamos almoçar.
Fomos almoçar; ás duas, horas Rita voltou para Andarahy, eu vim
escrever isto e vou dar um giro pela cidade.
* * * * *
12 de Janeiro.
Na conversa de ante-hontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa
a minha mulher, que lá está enterrada em Vienna. Pela segunda vez
falou-me em transportal-a para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que
estimaria muito estar perto della, mas que, em minha opinião, os mortos
ficam bem onde caem; redarguiu-me que estão muito melhor com os seus.
--Quando eu morrer, irei para onde ella estiver, no outro mundo, e ella
virá ao meu encontro, disse eu.
Sorriu, e citou o exemplo da viuva Noronha que fez transportar o marido
de Lisboa, onde faleceu, para o Rio de Janeiro, onde ella conta acabar.
Não disse mais sobre este assunto, mas provavalmente tornará a elle,
até alcançar o que lhe parece. Já meu cunhado dizia que era seu costume
della, quando queria alguma cousa.
Outra cousa que não escrevi foi a alusão que ella fez á gente Aguiar,
um cazal que conheci a ultima vez que vim, com licença, ao Rio de
Janeiro, e agora encontrei. São amigos della e da viuva, e celebram
daqui a dez ou quinze dias as suas bodas de prata. Já os visitei
duas vezes e o marido a mim. Rita falou-me delles com simpatia e
aconselhou-me a ir comprimental-os por ocasião das festas anniversarias.
--Lá encontrará Fidelia.
--Que Fidelia?
--A viuva Noronha.
--Chama-se Fidelia?
--Chama-se.
--O nome não basta para não cazar.
--Tanto melhor para você, que vencerá a pessoa e o nome, e acabará
cazando com a viuva. Mas eu repito que não caza.
* * * * *
14 de Janeiro.
A unica particularidade da biografia de Fidelia é que o pae e o
sogro eram inimigos politicos, chefes de partido na Parahyba do Sul.
Inimizade de familias não tem impedido que moços se amem, mas é preciso
ir a Verona ou alhures. E ainda os de Verona dizem comentadores que as
familias de Romeo e de Julieta eram antes amigas e do mesmo partido;
tambem dizem que nunca existiram, salvo na tradição ou somente na
cabeça de Shakespeare.
Nos nossos municipios, ao norte, ao sul e ao centro, creio que não
ha caso algum. Aqui a oposição dos rebentos continua a das raizes,
e cada arvore brota de si mesma, sem lançar galhos a outra, e
esterilisando-lhe o terreno, se pode. Eu, se fosse capaz de odio, era
assim que odiava; mas eu não odeio nada nem ninguem,-_perdono a tutti_,
como na opera.
Agora, como foi que elles se amaram,-os namorados da Parayba do Sul,-é
o que Rita me não referiu, e seria curioso saber. Romeo e Julieta aqui
no Rio, entre a lavoura e a advocacia,-porque o pae do nosso Romeo era
advogado na cidade da Parahyba,-é um desses encontros que importaria
conhecer para explicar. Rita não entrou nesses pormenores; eu, se me
lembrar, heide pedir-lh'os. Talvez ella os recuse imaginando que começo
deveras a morrer pela dama.
* * * * *
16 de Janeiro.
Tão depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente
delle, que para lá ia. Comprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me
noticias de Rita, e falámos durante alguns minutos sobre cousas geraes.
Isto foi hontem. Hoje de manhã recebi um bilhete de Aguiar,
convidando-me, em nome da mulher e delle, a ir lá jantar no dia 24. São
as bodas de prata. «Jantar simples e de poucos amigos» escreveu elle.
Soube depois que é festa recolhida. Rita vae tambem. Resolvi aceitar, e
vou.
* * * * *
20 de Janeiro.
Tres dias metido em casa, por um resfriamento com pontinha de febre.
Hoje estou bom, e segundo o medico, posso ja sair amanhã; mas poderei
ir ás bodas de prata dos velhos Aguiares? Profissional cauteloso, o Dr.
Silva me aconselhou que não vá; mana Rita que tratou de mim dous dias,
é da mesma opinião. Eu não a tenho contraria, mas se me achar lepido
e robusto, como é possivel, custar-me-ha não ir. Veremos; tres dias
passam depressa.
* * * * *
Seis horas da tarde.
Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma cousa
de Shellev e tambem de Thackeray. Um consolou-me de outro, este
desenganou-me d'aquelle; é assim que o engenho completa o engenho, e o
espirito aprende as linguas do espirito.
* * * * *
Nove horas da noite.
Rita jantou commigo; disse-lhe que estou são como um pero, e com forças
para ir ás bodas de prata. Ella, depois de me aconselhar prudencia,
concordou que, se não tiver mais nada, e fôr comedido ao jantar, posso
ir; tanto mais que os meus olhos terão lá dieta absoluta.
--Creio que Fidelia não vae, explicou.
--Não vae?
--Estive hoje com o desembargador Campos, que me disse haver deixado a
sobrinha com a nevralgia do costume. Padece de nevralgias. Quando ellas
lhe aparecem é por dias, e não vão sem muito remedio e muita paciencia.
Talvez vá visital-a amanhã ou depois.
Rita acrescentou que para o casal Aguiar é meio desastre; contavam com
ella, como um dos encantos da festa. Querem-se muito, elles a ella, e
ella a elles, e todos se merecem, é o parecer de Rita e pode vir a ser
o meu.
--Creio. Já agora, se me não sentir impedido, irei sempre. Tambem a mim
parece boa gente a gente Aguiar. Nunca tiveram filhos?
--Nunca. São muito afetuosos, D. Carmo ainda mais que o marido. Você
não imagina como são amigos um do outro. Eu não os frequento muito,
porque vivo metida commigo, mas o pouco que os visito basta para saber
o que valem, ella principalmente. O desembargador Campos, que os
conhece desde muitos annos, pode dizer-lhe o que elles são.
--Haverá muita gente ao jantar?
--Não, creio que pouca. A maior parte dos amigos irá de noite. Elles
são modestos, o jantar é só dos mais intimos, e por isso o convite que
fizeram a você mostra grande simpatia pessoal.
--Já senti isso, quando me apresentaram a elles, ha sete annos, mas
então supuz que era mais por causa do ministro que do homem. Agora,
quando me receberam, foi com muito gosto. Pois lá vou no dia 24, haja
ou não haja Fidelia.
* * * * *
25 de Janeiro.
Lá fui hontem ás bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as
minhas impressões da noite.
Não podiam ser melhores. A primeira dellas foi a união do casal. Sei
que não é seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação
moral de duas pessoas. Naturalmente a ocasião aviva a memoria dos
tempos passados, e a affeição dos outros como que ajuda a duplicar a
propria. Mas não é isso. Ha nelles alguma cousa superior á oportunidade
e diversa da alegria alheia. Senti que os annos tinham ali reforçado
e apurado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma só e
unica. Não senti, não podia sentir isto logo que entrei, mas foi o
total da noite.
Aguiar veiu receber-me á porta da sala,-eu diria que com uma intenção
de abraço, se pudesse havel-a entre nós e em tal logar; mas a mão fez
esse oficio, apertando a minha efusivamente. É homem de sessenta annos
feitos (ella tem cincoenta), corpo antes cheio que magro, agil, ameno e
risonho. Levou-me á mulher, a um lado da sala, onde ella conversava com
duas amigas. Não era nova para mim a graça da boa velha, mas desta vez
o motivo da visita e o teor do meu comprimento davam-lhe á expressão
do rosto algo que tolera bem a qualificação de radiante. Estendeu-me a
mão, ouviu-me e inclinou a cabeça, olhando de relance para o marido.
Senti-me objeto dos cuidados de ambos. Rita chegou pouco depois de mim;
vieram vindo outros homens e senhoras, todos de mim conhecidos, e vi
que eram familiares da casa. Em meio da conversação, ouvi esta palavra
inesperada a uma senhora, que dizia a outra:
--Não vá Fidelia ter ficado peor.
--Ella vem? perguntou a outra.
--Mandou dizer que vinha; está melhor; mas talvez lhe faça mal.
O mais que as duas disseram, relativamente á viuva, foi bem. O que me
dizia um dos convidados apenas foi ouvido por mim, sem lhe prestar
atenção maior que o assunto nem perder as aparencias della. Pela
hora proxima do jantar supuz que Fidelia não viesse. Supuz errado.
Fidelia e o tio foram os ultimos chegados, mas chegaram. O alvoroço
com que D. Carmo a recebeu mostrava bem a alegria de a ver ali, apenas
convalecida, e apezar do risco de voltar á noite. O prazer de ambas foi
grande.
Fidelia não deixou inteiramente o luto; trazia ás orelhas dous coraes,
e o medalhão com o retrato do marido, ao peito, era de ouro. O mais
do vestido e adorno escuro. As joias e um raminho de myosotis á cinta
vinham talvez em homenagem á amiga. Já de manhã lhe enviara um bilhete
de comprimentos acompanhando o pequeno vaso de porcelana, que estava em
cima de um movel com outros presentinhos anniversarios.
Ao vel-a agora, não a achei menos saborosa que no cemiterio, e ha
tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa tambem. Parece feita ao
torno, sem que este vocabulo dê nenhuma ideia de rigidez; ao contrario,
é flexivel. Quero aludir somente á correção das linhas,-falo das linhas
vistas; as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pelle macia e
clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal á viuvez.
Foi o que vi logo á chegada, e mais os olhos e os cabelos pretos; o
resto veiu vindo pela noite adiante, até que ella se foi embora. Não
era preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e
na conversação. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que
pensei da pessoa. Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso
justamente de Shelley, que relera dias antes, em caza, como lá ficou
dito atraz, e tirado de uma das suas estancias de 1821:
_I can give not what men call love._
Assim disse commigo em inglez, mas logo depois repeti em prosa nossa a
confissão do poeta, com um fecho da minha composição: «Eu não posso dar
o que os homens chamam amor... e é pena!»
Esta confissão não me fez menos alegre. Assim, quando D. Carmo veiu
tomar-me o braço, segui como se fosse para um jantar de nupcias. Aguiar
deu o braço a Fidelia, e sentou-se entre ella e a mulher. Escrevo
estas indicações sem outra necessidade mais que a de dizer que os dous
conjuges, ao pé um do outro, ficaram ladeados pela amiga Fidelia e por
mim. Desta maneira pudemos ouvir palpitar o coração aos dous,-hiperbole
permitida para dizer que em ambos nós, em mim, ao menos, repercutia a
felicidade daquelles vinte e cinco annos de paz e consolação.
A dona da casa, afavel, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente
feliz naquella data; não menos o marido. Talvez elle fosse ainda mais
feliz que ella, mas não saberia mostral-o tanto. D. Carmo possue o
dom de falar e viver por todas as feições, e um poder de atrair as
pessoas, como terei visto em poucas mulheres, ou raras. Os seus cabelos
brancos, colhidos com arte e gosto dão á velhice um relevo particular,
e fazem cazar nella todas as idades. Não, sei se me explico bem, nem é
preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas folhas de
solitario.
De quando em quando, ella e o marido trocavam as suas impressões com os
olhos, e pode ser que tambem com a fala. Uma só vez a impressão visual
foi melancolica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos
convivas,-sempre ha indiscretos,-no brinde que lhes fez aludiu á falta
de filhos, dizendo «que Deus lh'os negara para que elles se amassem
melhor entre si.» Não falou em verso, mas a ideia suportaria o metro e
a rima, que o autor talvez houvesse cultivado em rapaz; orçava agora
pelos cincoenta annos, e tinha um filho. Ouvindo aquella referencia,
os dous fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana
Rita me disse depois que essa era a unica ferida do cazal. Creio que
Fidelia percebeu tambem a expressão de tristeza dos dous, porque eu a
vi inclinar-se para ella com um gesto do calis e brindar a D. Carmo
cheia de graça e ternura:
--Á sua felicidade.
A esposa Aguiar, comovida, apenas pode responder logo com o gesto; só
instantes depois de levar o calis á boca, acrescentou, em voz meia
surda, como se lhe custasse sair do coração apertado esta palavra de
agradecimento:
--Obrigada.
Tudo foi assim segredado, quasi calado. O marido aceitou a sua parte do
brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de
melancolia.
De noite vieram mais visitas; tocou-se, tres ou quatro pessoas jogaram
cartas. Eu deixei-me estar na sala, a mirar aquella porção de homens
alegres e de mulheres verdes e maduras, dominando a todas pelo aspecto
particular da velhice D. Carmo, e pela graça apetitosa da mocidade de
Fidelia; mas a graça desta trazia ainda a nota da viuvez recente, aliás
de dous annos. Shelley continuava a murmurar ao meu ouvido para que eu
repetisse a mim mesmo: _I can give not what men call love._
Quando transmiti esta impressão a Rita, disse ella que eram desculpas
de mau pagador, isto é que eu, temendo não vencer a resistencia da
moça, dava-me por incapaz de amar. E pegou daqui para novamente fazer a
apologia da paixão conjugal de Fidelia.
--Todas as pessoas daqui e de fora que os viram,-continuou,-podem dizer
a você o que foi aquelle cazal. Basta saber que se uniram, como já
lhe disse, contra a vontade dos dous paes, e amaldiçoados por ambos.
D. Carmo tem sido confidente da amiga, e não repete o que lhe ouve
por discreta, resume só o que pode, com palavras de afirmação e de
admiração. Tenho-as ouvido muita vez. A mim mesma Fidelia conta alguma
cousa. Converse com o tio... Olhe, elle que lhe diga tambem da gente
Aguiar...
Neste ponto interrompi:
--Pelo que ouço, emquanto eu andava lá fóra, a reprezentar o Brazil,
o Brazil fazia-se o seio de Abrahão. Você, o cazal Aguiar, o cazal
Noronha, todos os cazaes, em suma, faziam-se modelos de felicidade
perpetua.
--Pois peça ao desembargador que lhe diga tudo.
--Outra impressão que levo desta casa e desta noite é que as duas
damas, a casada e a viuva, parecem amar-se como mãe e filha, não é
verdade?
--Creio que sim.
--A viuva tambem não tem filhos?
--Tambem não. É um ponto de contacto.
--Ha um ponto de desvio; é a viuvez de Fidelia.
--Isso não; a viuvez de Fidelia está com a velhice de D. Carmo; mas
se você acha que é desvio tem nas suas mãos concertal-o, é arrancar a
viuva á viuvez, se puder; mas não pode, repito.
A mana não costuma dizer pilherias, mas quando lhe sae alguma tem
pico. Foi o que eu lhe disse então, ao metel-a no carro que a levou a
Andarahy, em quanto eu vim a pé para o Cattete. Esqueceu-me dizer que a
casa do Aguiar é na praia do Flamengo, ao fundo de um pequeno jardim,
casa velha mas solida.
—-—-—
Sabado.
Hontem encontrei um velho conhecido do corpo diplomatico e prometi ir
jantar com elle amanhã em Petropolis. Subo hoje e volto segunda-feira.
O peor é que accordei de mau humor, e antes quizera ficar que subir. E
dahi pode ser que a mudança de ar e de espectaculo altere a disposição
do meu espirito. A vida, mormente nos velhos, é um oficio cançativo.
* * * * *
Segunda-Feira.
Desci hoje de Petropolis. Sabado, ao sair a barca da Prainha, dei com
o desembargador Campos a bordo, e foi um bom encontro, porque dahi
a pouco o meu mau humor cedia, e cheguei a Mauá já meio curado. Na
estação de Petropolis estava restabelecido inteiramente.
Não me lembra se ja escrevi neste _Memorial_ que o Campos foi meu
colega de anno em S. Paulo. Com o tempo e a ausencia perdemos a
intimidade, e quando nos vimos outra vez, o anno passado, apezar das
recordações escolásticas que surgiram entre nós, eramos estranhos.
Vimo-nos algumas vezes, e passámos uma noite no Flamengo; mas a
diferença da vida tinha ajudado o tempo e a ausencia.
Agora na barca fomos reatando melhor os laços antigos. A viagem por mar
e por terra, eram de sobra para avivar alguma cousa da vida escolar.
Bastante foi; acabámos lavados da velhice.
Ao subir a serra as nossas impressões divergiram um tanto. Campos
achava grande prazer na viagem que iamos fazendo em trem de ferro. Eu
confessava-lhe que tivera maior gosto quando alli ia em caleças tiradas
a burros, umas atraz das outras, não pelo vehiculo em si, mas porque ia
vendo, ao longe, cá em baixo, aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade
com tantos aspectos pintorescos. O trem leva a gente de corrida, de
afogadilho, desesperado, até á propria estação de Petropolis. E mais
lembrava as paradas, aqui para beber café, alli para beber agua na
fonte celebre, e finalmente avistado alto da serra, onde os elegantes
de Petropolis aguardavam a gente e a acompanhavam nos seus carros e
cavalos até á cidade; alguns dos passageiros de baixo passavam alli
mesmo para os carros onde as familias esperavam por elles.
Campos continuou a dizer todo o bem que achava no trem de ferro,
como prazer e como vantagem. Só o tempo que a gente poupa! Eu, se
retorquisse dizendo-lhe bem do tempo que se perde, iniciaria uma
especie de debate que faria a viagem ainda mais sufocada e curta.
Preferi trocar de assunto e agarrei-me aos derradeiros minutos, falei
do progresso, elle tambem, e chegamos satisfeitos á cidade da serra.
Os dous fomos para o mesmo hotel (Bragança). Depois de jantar saimos
em passeio de digestão, ao longo do rio. Então, a proposito dos tempos
passados, falei do cazal Aguiar e do conhecimento que Rita me disse que
elle tinha da vida e da mocidade dos dous conjuges. Confessei achar
nestes um bom exemplo de aconchego e união. Talvez a minha intenção
secreta fosse passar dalli ao cazamento da propria sobrinha delle, suas
condições e circumstancias, cousa dificil pela curiosidade que podia
exprimir, e aliás não está nos meus habitos, mas elle não me deu azo
nem tempo. Todo este foi pouco para dizer da gente Aguiar. Ouvi com
paciencia, porque o assunto entrou a interessar-me depois das primeiras
palavras, e tambem porque o desembargador fala mui agradavelmente. Mas
agora é tarde para transcrever o que elle disse; fica para depois, um
dia, quando houver passado a impressão, e só me ficar de memoria o que
valer a pena guardar.
* * * * *
4 de Fevereiro.
Eia, resumamos hoje o que ouvi ao desembargador em Petropolis ácerca do
cazal Aguiar. Não ponho os incidentes, nem as anedotas soltas, e até
excluo os adjectivos que tinham mais interesse na boca delle do que
lhes poderia dar a minha penna; vão só os precisos á comprehensão de
cousas e pessoas.
A razão que me leva a escrever isto é a que entende com a situação
moral dos dous, e prende um tanto com a viuva Fidelia. Quanto á vida
delles eil-a aqui em termos secos, curtos e apenas biograficos.
Aguiar cazou guarda-livros. D. Carmo vivia então com a mãe, que era
de Nova-Friburgo, e o pae, um relojoeiro suisso daquella cidade.
Cazamento a grado de todos. Aguiar continuou guarda-livros, e passou de
uma caza a outra e mais outra, fez-se socio da ultima, até ser gerente
de banco, e chegaram á velhice sem filhos. É só isto, nada mais que
isto. Viveram até hoje sem bulha nem matinada.
Queriam-se, sempre se quizeram muito, apezar dos ciumes que tinham um
do outro, ou por isso mesmo. Desde namorada, ella exerceu sobre elle a
influencia de todas as namoradas deste mundo, e acaso do outro, se as
ha tão longe. Aguiar contára uma vez ao desembargador os tempos amargos
em que, ajustado o cazamento, perdeu o emprego por falencia do patrão.
Teve de procurar outro; a demora não foi grande, mas o novo logar
não lhe permitiu cazar logo, era-lhe preciso assentar a mão, ganhar
confiança, dar tempo ao tempo. Ora, a alma delle era de pedras soltas;
a fortaleza da noiva foi o cimento e a cal que as uniram naquelles dias
de crise. Copio esta imagem que ouvi ao Campos, e que elle me disse ser
do proprio Aguiar. Cal e cimento valeram-lhe logo em todos os casos de
pedras desconjuntadas. Elle via as cousas pelos seus proprios olhos,
mas se estes eram ruins ou doentes, quem lhe dava remedio ao mal fisico
ou moral era ella.
A pobreza foi o lote dos primeiros tempos de cazados. Aguiar dava-se
a trabalhos diversos para acudir com suprimentos á escassez dos
vencimentos. D. Carmo guiava o serviço domestico ajudando o pessoal
deste e dando aos arranjos da casa o conforto que não poderia vir por
dinheiro. Sabia conservar o bastante e o simples; mas tão ordenadas as
cousas, tão completadas pelo trabalho das mãos da dona que captavam os
olhos ao marido e ás visitas. Todas ellas traziam uma alma, e esta era
nada menos que a mesma, repartida sem quebra e com alinho raro, unindo
o gracioso ao precizo. Tapetes de meza e de pés, cortinas de janelas
e outros mais trabalhos que vieram com os annos, tudo trazia a marca
da sua fabrica, a nota intima da sua pessoa. Teria inventado, se fosse
preciso, a pobreza elegante.
Criaram relações variadas, modestas como elles e de boa camaradagem.
Neste capitulo a parte de D. Carmo é maior que a de Aguiar. Já em
menina era o que foi depois. Havendo estudado em um colegio do
Engenho Velho, a moça acabou sendo considerada a primeira alumna do
estabelecimento, não só sem desgosto, tacito ou expresso, de nenhuma
companheira, mas com prazer manifesto e grande de todas, recentes ou
antigas. A cada uma pareceu que se tratava de si mesma. Era então
algum prodigio de talento? Não, não era; tinha a inteligencia fina,
superior ao comum das outras, mas não tal que as reduzisse a nada. Tudo
provinha da indole afetuosa daquella creatura.
Dava-lhe esta o poder de atrair e conchegar. Uma cousa me disse Campos
que eu havia observado de relance naquella noite das bodas de prata,
é que D. Carmo agrada igualmente a velhas e a moças. Ha velhas que
não sabem fazer-se entender de moças, assim como ha moças fechadas ás
velhas. A senhora de Aguiar penetra e se deixa penetrar de todas; assim
foi joven, assim é madura.
Campos não os acompanhou sempre, nem desde os primeiros tempos; mas
quando entrou a frequental-os, viu nella o desenvolvimento da noiva e
da recem-casada, e comprehendeu a adoração do marido. Este era feliz,
e para socegar das inquietações e tedios de fóra, não achava melhor
respiro que a conversação da espoza, nem mais doce lição que a de seus
olhos. Era della a arte fina que podia restituil-o ao equilibrio e á
paz.
Um dia, em casa delles, abrindo urna coleção de versos italianos,
Campos achou entre as folhas um papelinho velho com algumas estrofes
escritas. Soube que eram do livro, copiadas por ella nos dias de
noiva, segundo ambos lhe disseram, vexados; restituiu o papel á
pagina, e o volume á estante. Um e outro gostavam de versos, e talvez
ella tivesse feito alguns, que deitou fóra com os últimos solecismos
de familia. Ao que parece, traziam ambos em si um germen de poesia
instintiva, a que faltára expressão adequada para sair ca fóra.
A ultima reflexão é minha, não do desembargador Campos, e leva o
unico fim de completar o retrato deste casal. Não é que a poesia
seja necessaria aos costumes, mas pode dar-lhes graça. O que eu fiz
então foi perguntar ao desembargador se taes creaturas tiveram algum
resentimento da vida. Respondeu-me que um, um só e grande; não tiveram
filhos.
--Mana Rita disse-me isso mesmo.
--Não tiveram filhos, repetiu Campos.
Ambos queriam um filho, um só que fosse, ella ainda mais que elle. D.
Carmo possuia todas as especies de ternura, a conjugal, a filial, a
maternal. Campos ainda lhe conheceu a mãe, cujo retrato, encaixilhado
com o do pae, figurava na sala, e falava de ambos com saudades longas e
suspiradas. Não teve irmãos, mas a afeição fraternal estaria incluida
na amical, em que se dividia tambem. Quanto aos filhos, se os não
teve, é certo que punha muito de mãe nos seus carinhos de amiga e
de esposa. Não menos certo é que para essa especie de orfandade ás
avessas, tem agora um paliativo.
--D. Fidelia?
--Sim, Fidelia e teve ainda outro que acabou.
Aqui referiu-me uma historia que apenas levará meia duzia de linhas, e
não é pouco para a tarde que vae baixando; digamol-a depressa.
Uma das suas amigas tivera um filho, quando D. Carmo ia em vinte e
tantos annos. Sucessos que o desembargador contou por alto e não valia
a pena instar por elles, trouxeram a mãe e o filho para a casa Aguiar
durante algum tempo. Ao cabo da primeira semana tinha o pequeno duas
mães. A mãe real precisou ir a Minas, onde estava o marido; viagem de
poucos dias. D. Carmo alcançou que a amiga lhe deixasse o filho e a
ama. Taes foram os primeiros liames da afeição que cresceu com o tempo
e o costume. O pae era comerciante de café,-comissario,-e andava então
a negocios por Minas, a mãe era filha de Taubaté, S. Paulo, amiga
de viajar a cavalo. Quando veiu o tempo de batizar o pequeno, Luiza
Guimarães convidou a amiga para madrinha delle. Era justamente o que a
outra queria; aceitou com alvoroço, o marido com prazer, e o batizado
se fez como uma festa da familia Aguiar.
A meninice de Tristão,-era o nome de afilhado,-foi dividida entre as
duas mães, entre as duas cazas. Os annos vieram, o menino crescia,
as esperanças maternas de D. Carmo iam morrendo. Este era o filho
abençoado que o acaso lhes deparára, disse um dia o marido; e a mulher,
catolica tambem na linguagem, emendou que a Providencia, e toda se
entregou ao afilhado. A opinião que o desembargador achou em algumas
pessoas, e creio justa, é que D. Carmo parecia mais verdadeira mãe que
a mãe de verdade. O menino repartia-se bem com ambas, preferindo um
pouco mais a mãe postiça. A razão podiam ser os carinhos maiores, mais
continuados, as vontades mais satisfeitas e finalmente os doces, que
tambem são motivos para o infante, como para o adulto. Veiu o tempo da
escola, e ficando mais perto da caza Aguiar, o menino ia jantar alli, e
seguia depois para as Laranjeiras, onde morava Guimarães. Algumas vezes
a própria madrinha o levava.
Nas duas ou tres molestias que o pequeno teve, a aflição de D. Carmo
foi enorme. Uso o proprio adjetivo que ouvi ao Campos, com quanto me
pareça enfatico, e eu não amo a enfasis. Confesso aqui uma cousa. D.
Carmo é das poucas pessoas a quem nunca ouvi dizer que são «doudas
por morangos», nem que «morrem por ouvir Mozart.» Nella a intensidade
parece estar mais no sentimento que na expressão. Mas, emfim, o
desembargador assistiu á ultima das molestias do menino, que foi em
casa da madrinha, e pôde ver a aflição de D. Carmo, os seus afagos
e sustos, alguns minutos de desespero e de lagrimas, e finalmente a
alegria de restabelecimento. A mãe era mãe, e sentiu de certo, e muito,
mas diz elle que não tanto; é que haverá ternuras atadas, ou ainda
moderadas, que se não mostram inteiramente a todos.
Doenças, alegrias, esperanças, todo o repertorio daquella primeira
quadra da vida de Tristão foi visto, ouvido e sentido pelos dous
padrinhos, e mais pela madrinha, como se fora do seu proprio sangue.
Era um filho que alli estava, que fez dez annos, fez onze, fez doze,
crescendo em altura e graça. Aos treze annos, sabendo que o pae o
destinava ao comercio, foi ter com a madrinha e confiou-lhe que não
tinha gosto para tal carreira.
--Porque, meu filho?
D. Carmo usava este modo de falar, que a idade e o parentesco
espiritual lhe permitiam, sem usurpação de ninguem. Tristão
confessou-lhe que a sua vocação era outra. Queria ser bacharel em
direito. A madrinha defendeu a intenção do pae, mas com ella Tristão
era ainda mais voluntarioso que com elle e a mãe, e teimou em estudar
direito e ser doutor. Se não havia propriamente vocação, era este
titulo que o atraía.
--Quero ser doutor! quero ser doutor!
A madrinha acabou achando que era bom, e foi defender a causa do
afilhado. O pae deste relutou muito. «Que havia no comercio que não
fosse honrado, além de lucrativo? Demais, elle não ia começar sem
nada, como sucedia a outros e sucedeu ao proprio pae, mas já amparado
por este.» Deu-lhe outras mais razões, que D. Carmo ouviu sem negar,
alegando sempre que o importante era ter gosto, e se o rapaz não tinha
gosto, melhor era ceder ao que lhe aprazia. Ao cabo de alguns dias o
pae de Tristão cedeu, e D. Carmo quiz ser a primeira que désse ao rapaz
a boa nova. Ella propria sentia-se feliz.
Cinco ou seis mezes depois, o pae de Tristão resolveu ir com a mulher
cumprir uma viagem marcada para o anno seguinte,-visitar a familia
delle; a mãe de Guimarães estava doente. Tristão, que se preparava
para os estudos, tão depressa viu apressar a viagem dos paes, quiz
ir com elles. Era o gosto da novidade, a curiosidade da Europa, algo
diverso das ruas do Rio de Janeiro, tão vistas e tão cançadas. Pae e
mãe recusaram leval-o; elle insistiu. D. Carmo, a quem elle recorreu
outra vez, recusou-se agora, porque seria afastal-o de si, ainda que
temporariamente; juntou-se aos paes do mocinho para conserval-o aqui.
Aguiar desta vez tomou parte ativa na luta; mas não houve luta que
valesse. Tristão queria á fina força embarcar para Lisboa.
--Papae volta daqui a seis mezes; eu volto com elle. Que são seis mezes?
--Mas os estudos? dizia-lhe Aguiar. Você vae perder um anno...
--Pois que se perca um anno. Que é um anno que não valha a pena
sacrifical-o ao gosto de ir ver a Europa?
Aqui D. Carmo teve uma inspiração; prometeu-lhe que, tão depressa elle
se formasse, ella iria com elle viajar, não seis mezes, mas um anno ou
mais; elle teria tempo de ver tudo, o velho e o novo, terras, mares,
costumes... Estudasse primeiro. Tristão não quiz. A viagem se fez, a
despeito das lagrimas que custou.
Não ponho aqui taes lagrimas, nem as promessas feitas, as lembranças
dadas, os retratos trocados entre o afilhado e os padrinhos. Tudo se
afirmou de parte a parte, mas nem tudo se cumpriu; e, se de lá vieram
cartas, saudades e noticias, quem não veiu foi elle. Os paes foram
ficando muito mais tempo que o marcado, e Tristão começou o curso da
Escola Medica de Lisboa. Nem comercio nem jurisprudencia.
Aguiar escondeu quanto pôde a noticia á mulher, a ver se tentava
alguma cousa que trocasse as mãos á sorte, e restituisse o rapaz ao
Brazil; não alcançou nada, e elle proprio não podia já disfarçar a
tristeza. Deu a dura novidade á mulher, sem lhe acrescentar remedio
nem consolação; ella chorou longamente. Tristão escreveu comunicando
a mudança de carreira e prometendo vir para o Brazil, apenas formado;
mas dahi a algum tempo eram as cartas que escasseavam e acabaram
inteiramente, ellas e os retratos, e as lembranças; provavelmente não
ficaram lá saudades. Guimarães aqui veiu, sosinho, com o unico fim de
liquidar o negocio, e embarcou outra vez para nunca mais.
* * * * *
5 de Fevereiro.
Relendo o que escrevi hontem, descubro que podia ser ainda mais
resumido, e principalmente não lhe pôr tantas lagrimas. Não gosto
dellas, nem sei se as verti algum dia, salvo por mama, em menino;
mas lá vão. Pois vão tambem essas que ahi deixei, e mais a figura de
Tristão, a que cuidei dar meia duzia de linhas e levou a maior parte
dellas. Nada ha peor que gente vadia,-ou apozentada, que é a mesma
cousa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não ha
papel que baste.
Entretanto, não disse tudo. Verifico que me faltou um ponto da narração
do Campos. Não falei das ações do Banco do Sul, nem das apolices, nem
das cazas que o Aguiar possue, alem dos honorarios de gerente; terá
uns duzentos e poucos contos. Tal foi a afirmação do Campos, á beira
do rio, em Petropolis. Campos é homem interessante, posto que sem
variedade de espirito; não importa, uma vez que sabe despender o que
tem. Verdade é que tal regra levaria a gente a aceitar toda casta de
insipidos. Elle não é destes.
* * * * *
6 de Fevereiro.
Outra cousa que tambem não escrevi no dia 4, mas essa não entrou
na narração do Campos. Foi ao despedir-me delle, que lá ficou em
Petropolis tres ou quatro dias. Como eu lhe deixasse recomendações
para a sobrinha, ouvi-lhe que me respondeu:
--Está em casa da gente Aguiar; passou lá a tarde e a noite de hontem,
e conta ficar até que eu desça.
* * * * *
6 de Fevereiro, á noite.
Diferença de vocações: o cazal Aguiar morre por filhos, eu nunca
pensei nelles, nem lhes sinto a falta, apezar de só. Alguns ha que os
quizeram, que os tiveram e não souberam guardal-os.
* * * * *
10 de Fevereiro.
Hontem, indo jantar a Andarahy, contei a mana Rita o que ouvi ao
desembargador.
--Elle não disse nada da sobrinha?
--Todo o tempo foi pouco para falar da gente Aguiar.
--Pois eu soube o que me faltava de Fidelia; foi a propria D. Carmo que
me contou.
--Se a historia é tão longa como a della...
--Não, é muito mais curta; diz-se em cinco minutos.
Tirei o relogio para ver a hora exata, e marcar o tempo da narração.
Rita começou e acabou em dez minutos. Justamente o dobro. Mas o assunto
era curioso, trata-se do cazamento, e a viuva interessa-me.
--Conheceram-se aqui na Corte, disse Rita; na roça nunca se viram.
Fidelia passava uns tempos em casa do desembargador (a tia ainda era
viva), e o rapaz. Eduardo, estudava na Escola de Medicina. A primeira
vez que elle a viu foi das _torrinhas_ do Teatro Lirico, onde estava
com outros estudantes; viu-a á frente de um camarote, ao pé da tia.
Tornou a vel-a, foi visto por ella, e acabaram namorados um do outro.
Quando souberam quem eram, já o mal estava feito, mas provavelmente o
mal se faria, ainda que o soubessem desde principio, porque a paixão
foi repentina. O pae de Fidelia, vindo á Corte, teve noticia do caso
pelo proprio irmão, que cautelosamente lhe disse o que desconfiava, e
insinuou que era boa ocasião de fazerem as pazes as duas familias. O
barão ficou furioso, pegou da moça e levou-a para a fazenda. Você não
imagina o que lá se passou.
--Imagino, imagino.
--Não imagina.
--Pôl-a no tronco?
--Não, protestou Rita; não fez mais que ameaçal-a com palavras, mas
palavras duras, dizendo-lhe que a poria fora de casa, se continuasse
a pensar em tal atrevimento. Fidelia jurou uma e muitas vezes que
tinha um noivo no coração e cazaria com elle, custasse o que custasse.
A mãe estava do lado do marido, e opoz-se tambem. Fidelia resistiu
e recolheu-se ao silencio, passava os dias no quarto, chorando. As
mucamas viam as lagrimas e os sinaes dellas, e desconfiavam de amores,
até que adivinharam a pessoa, se não foi palavra que ouviram aos
proprios senhores. Emfim, a moça entrou a não querer comer. Vendo isto,
a mãe, com receio de algum acesso de molestia, começou a pedir por
ella, mas o marido declarou que não lhe importava vel-a morta ou até
douda; antes isso que consentir na mistura do seu sangue com o da gente
Noronha. A oposição da gente Noronha não foi menor. Ao saber da paixão
do filho pela filha do fazendeiro, o pae de Eduardo mandou-lhe dizer
que o deixaria na rua, se teimasse em semelhante afronta.
--Como inimigos eram dignos um do outro, observei.
--Eram, concordou Rita. O desembargador soube o que se passava e foi
á fazenda, onde viu tudo confirmado, e disse ao irmão que não valia
opor-se, porque a filha, chegada á maioridade, podia arrancar-se de
caza. Ninguem obrigava a humilhar-se deante da gente Noronha, nem
a fazer as pazes com ella; bastava que os filhos cazassem e fossem
para onde quizessem. O barão recusou a pés juntos, e o desembargador
dispunha-se a voltar para a Corte, sem continuar a comissão que se dera
a si mesmo, quando Fidelia adoeceu deveras. A doença foi grave, a cura
dificil pela recusa dos remedios e alimentos... Que sorriso é esse? Não
acredita?
--Acredito, acredito; acho romanesco. Em todo caso, essa moça
interessa-me. A cura, dizia você, foi dificil?
--Foi; a mãe resolveu pedir ao marido que cedesse, o marido concedeu
finalmente, impondo a condição de nunca mais receber a filha nem
lhe falar; não assistiria ao cazamento, não queria saber della.
Restabelecida, Fidelia veiu com o tio, e no anno seguinte cazou. O pae
do noivo tambem declarou que os não queria ver.
--Tanta luta para não serem felizes por muito tempo.
--É verdade. A felicidade foi grande mas curta. Um dia resolveram ir
á Europa, e foram, até que se deu a morte inesperada do marido, em
Lisboa, donde Fidelia fez transportar o corpo para aqui. Você lá a
viu ao pé da sepultura; lá vae muitas vezes. Pois nem assim o pae,
que tambem já é viuvo, nem assim quiz receber a filha. Quando veiu á
Corte a primeira vez, Fidelia foi ter com elle, sosinha, depois com
o tio; todas as tentativas foram inuteis. Nunca mais a viu nem lhe
falou. Eu, mais ou menos, já contei isto a você; só não conhecia bem as
particularidades da resistencia na fazenda, mas ahi está. Agora diga se
ella é viuva que se caze.
--Com qualquer, não; pelo menos, é dificil; mas, um sujeito
fresco,-continuei enfunando-me e rindo.
--Você ainda pensa...?
--Eu, mana? Eu penso no seu jantar, que hade estar delicioso. O que me
fica da historia é que essa moça, além de bonita, é teimosa; mas a sua
sopa vale para mim todas as noções esteticas e moraes deste mundo e do
outro.
Ao jantar, contei a Rita o que me dissera o desembargador sobre haver
ido a sobrinha passar alguns dias ao Flamengo, e perguntei-lhe se era
assim a intimidade na casa.
--Certamente que é. Já uma vez Fidelia adoeceu no Flamengo e lá se
tratou. Tendo perdido a esperança do filho postiço, o Tristão, que
os esqueceu inteiramente, ficaram cada vez mais ligados á viuva. D.
Carmo é toda ternura para ella. Você lembra-se das bodas de prata, não?
Aguiar não lhe chama filha para não parecer que usurpa esse titulo ao
pae verdadeiro; mas a mulher, não tendo ella mãe, é o nome que lhe dá.
Nem Fidelia parece querer outra mãe.
* * * * *
11 de Fevereiro.
Antigamente, quando eu era menino, ouvia dizer que ás creanças só se
punham nomes de santos ou santas. Mas Fidelia...? Não conheço santa
com tal nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado á filha do barão,
como a fórma feminina de _Fidelio_, em homenagem a Beethoven? Pode
ser; mas eu não sei se elle teria dessas inspirações e reminiscencias
artisticas. Verdade é que o nome da familia, que serve ao titulo
nobiliario, Santa-Pia, tambem não o acho na lista dos canonisados, e a
unica pessoa que conheço, assim chamada, é a de Dante: _Ricorditi di
me, chi son la Pia._
Parece que já não queremos Annas nem Marias, Catarinas nem Joannas, e
vamos entrando em outra onomastica, para variar o aspeto ás pessoas.
Tudo serão modas neste mundo, excepto as estrelas e eu, que sou o mesmo
antigo sujeito, salvo o trabalho das notas diplomaticas, agora nenhum.
* * * * *
18 de Fevereiro.
Campos disse-me hoje que o irmão lhe escrevera, em segredo, ter ouvido
na roça o boato de uma lei proxima de abolição. Elle, Campos, não crê